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Opinião

Disciplina desvalorizada: a crise da autoridade docente na educação v5j5h

Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.

Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT. Foto: Divulgação 5b1s6n

Foto: Divulgação Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT. Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.

Quando foi a última vez que o leitor teve a oportunidade de pisar em uma sala de aula do ensino básico? Isso foi em uma escola pública ou privada? Lembra-se de como o professor ou a professora tentava manter algum grau de ordem (para quem esteve na escola pública, a realidade era uma, na escola privada, outra)? Como esquecer as lembranças afetivas envolvidas na formação escolar, uma vez que essas modelam boa parte da socialização de praticamente todos? É na escola que se depreendem os famosos “códigos” culturais vigentes e responsáveis pelo liame do circuito coletivo. Lá também se entende, ou pelo menos deveria entender, que a autoridade não é ruim, antes, é absolutamente necessária. A falta de autoridade legitimada nas mãos dos docentes é um dos grandes problemas enfrentados pela educação formal no Brasil.

Em uma rápida volta no tempo e espaço, encontra-se na obra “Emílio”, um tratado sobre educação, algo para refletir sobre a autoridade no âmbito formativo. Para o autor da obra, Rousseau, a autoridade é exercida de forma não coercitiva, alinhada ao desenvolvimento natural e à razão. O objetivo é formar um indivíduo autônomo, capaz de viver livremente em sociedade, compreendendo a autoridade legítima como fruto de necessidades compartilhadas, não da dominação. Todavia, Rousseau retira de seu projeto pedagógico-educacional todas as assimetrias sociais, históricas, culturais, políticas, econômicas, entre outras, para desenvolvê-lo na terra prometida ou quiçá no próprio paraíso celeste. Deixando o universo idealista, forjado no comprometimento das flores no espaço, volta-se para a concretude da sala de aula, onde a autoridade carece de atendimento. 

Sem autoridade disciplinar, validada pelo dispositivo escolar e pelo próprio circuito social, o professor encontra dificuldades para manter a ordem mínima necessária ao desenvolvimento das atividades didáticas. A quebra do clima de respeito e concentração afeta diretamente a assimilação de conteúdos e o rendimento escolar.A autoridade do professor não se resume ao controle disciplinar, já que precisa envolver um reconhecimento simbólico do seu lugar como “mediador do saber” (expressão que deve ser mais bem problematizada, mas, por ora, mantém-se o emprego). Quando tal autoridade é corroída, o docente perde a legitimidade diante dos alunos, reduzindo-se a mero “aplicador de atividades”. Para Michel Foucault, em “Vigiar e punir”, a autoridade é parte de um dispositivo de saber-poder necessário para a constituição dos sujeitos. Quando se elimina toda forma de autoridade em nome de uma pretensa liberdade, desorganiza-se o campo de forças que constitui o espaço pedagógico.

Quando os professores são sistematicamente desrespeitados e desautorizados, seja por alunos, famílias ou gestores, transmite-se à sociedade a ideia de que seu papel é secundário, pouco relevante ou descartável. Professores que não conseguem exercer autoridade tendem a experimentar maior desgaste emocional, sentimento de impotência e frustração. Isso contribui para quadros de estresse, burnout e abandono da profissão. Segundo Pierre Bourdieu, em “A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino”, a perda do capital simbólico do professor contribui para o rebaixamento de seu status social. Isso desestimula profundamente a entrada de novos profissionais na carreira e enfraquece a função pública da escola (algo já percebido na sociedade brasileira há algum tempo).

Em direcionamento complementar, a perda da autoridade também gera insegurança jurídica: qualquer tentativa de correção de comportamento pode ser vista como abuso ou assédio, o que amedronta professores e paralisa ações formativas mais firmes. Esse ambiente favorece a submissão da escola a lógicas jurídicas exógenas à pedagogia, comprometendo sua autonomia institucional e o pacto educativo coletivo.A relação entre professor e aluno é, implicitamente, um contrato pedagógico: o professor se compromete a ensinar e o aluno, a aprender, em um contexto de respeito mútuo. Sem autoridade, esse contrato se rompe, pois a assimetria necessária à mediação do saber é negada. Hannah Arendt, em “A crise na educação”, defende a importância da autoridade na relação pedagógica como forma de introdução do novo no mundo comum, sendo responsabilidade do professor assumir a posição de guia.

A ausência de uma menção explícita à dimensão ética implicada na erosão da autoridade docente não se deve à irrelevância do tema, mas à vastidão de seu alcance, exigente de uma reflexão à parte. 

Portanto, em um tempo em que a autoridade é confundida com autoritarismo e a liberdade, com ausência de limites, torna-se urgente reabilitar a noção de disciplina como valor formativo e condição de possibilidade para o ensino-aprendizagem. O esvaziamento da autoridade docente não é apenas um sintoma de crise institucional, mas o reflexo de uma sociedade que perdeu a confiança na mediação do saber e no papel civilizatório da escola. Reconstruir essa autoridade não é um ato de regressão, mas de responsabilidade histórica. Afinal, nenhuma sociedade pode projetar-se no futuro se despreza aqueles a quem confia a tarefa de formar suas novas gerações.

*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins.